Mesmo após tanto tempo, ainda me recordo de cada detalhe, como se
tivesse acontecido há poucas horas. Até aquele momento, ninguém sabia como
tinha começado. Especulava-se que era algum vírus. Nada de novo, era a primeira
suspeita sempre que uma doença surgia e se espalhava tão rápido. O burburinho
era que, por uma zombaria do destino, o tal vírus tinha se adaptado e saltado
de algum macaco para o homem. Pensando com calma, agora, os macacos também eram
a primeira opção a se culpar. Sempre. Mas o fato é que nenhuma viva alma tinha
alguma certeza. Nada de concreto. Ainda se imaginava que a origem seria os
arredores de Nova Deli, onde surgiram os primeiros casos. Como fomos inocentes.
A resposta esteve diante dos nossos olhos o tempo todo. Mas procuramos nos
lugares errados. Perdemos muito tempo hábil. As respostas certas costumam ser
as mais simples, mas, raramente, nos damos conta disso.
Eu havia chegado ao hospital muito cedo, sem
tempo nem para a rotineira xícara de café. Fui logo em busca dos últimos casos.
Era a minha rotina nas últimas semanas. O pouco tempo que me sobrava tinha uma
única finalidade: dormir. Nunca era o suficiente e, a cada dia, havia menos
horas disponíveis para esse fim. Quatro horas já pareciam uma eternidade.
Alguns dias, nem isso me sobrava. Fazia apenas pouco mais de duas semanas que a
enfermidade tinha sido confirmada no país, mas o pânico já era generalizado.
Fanáticos falavam em apocalipse, em castigo divino e todo tipo de sandice que
se possa imaginar. As igrejas nunca estiveram tão cheias. Por sorte, as
autoridades mantinham os verdadeiros fatos encobertos. Se viesse a público o
que realmente se passava com os pacientes, de acordo com o avançar da doença,
ninguém poderia controlar a histeria. Os sintomas eram chocantes, até para
colegas experientes. Só que eu não podia me dar a esse luxo. Era o cirurgião
responsável do hospital, mas, com a gravidade da situação, todos foram
destacados para a ala de infectologia. E, diga-se de passagem, a cada dia os doentes
se amontoavam em maior número, na esperança de uma cura que nós simplesmente
desconhecíamos por completo. Ofereciam pequenas fortunas, em vão. A doença era,
ao menos, justa. Qualquer um poderia se infectar e o caminho era um só: a morte.
A primeira paciente que
vi naquele dia foi Helena. Devia ter pouco mais de 30 anos. 35 no máximo.
Quando entrou no hospital, quatro ou cinco dias antes, era uma bela moça com
longos cabelos loiros e olhos azuis muito vivos. Foi impossível não me lembrar
de Olívia. Pensando agora, percebo que ela teve mais sorte que nós. A morte sempre
nos parece algo terrível. O fim. Para Olívia, contudo, foi uma chance de não presenciar
o turbilhão para o qual fomos arrastados. Agora penso assim. Mas tudo ainda era
muito recente e doloroso para mim, e eu não poderia pensar dessa forma naqueles
dias. Olívia e eu sempre fomos muito próximos. Mamãe costumava brincar que o
maior tempo em que nos viu longe foram aqueles cinco minutos que nos separaram
no nascimento. Ela não só nasceu antes, sempre foi mais adiantada que eu em
tudo. Mais madura, mais animada, mais feliz. A ferida de sua perda ainda
latejava e ardia em mim. Mal conseguia me concentrar no trabalho logo nos
primeiros dias. E, então, veio a epidemia, sorrateira e avassaladora, sugando o
que me restava de energia.
Helena chegou
reclamando de muita febre e dor de cabeça, mas não perdera o bom humor. A febre
se tornou uma rotina, e as convulsões se intensificavam a cada dia. Há dois
dias, três no máximo, haviam começado os sangramentos. Por todo o corpo, mas,
principalmente, pelos olhos, ouvidos e nariz. Agora, eu mal a reconheceria, não
fosse o prontuário aos pés de sua cama. Os belos olhos azuis estavam tão
profundos que seria difícil percebê-los como olhos. A pele já tinha se tornado
enrugada e seca. Quase nada dos belos cabelos de outrora restava sobre seu
crânio, apenas uma penugem muito rala podia ser notada.
Ela estava muito calma
quando entrei. Era incomum que os pacientes se mantivessem tranquilos, nesse
estágio tão avançado. Parecia mais que alguma entidade sobrenatural lhes tomava
conta do corpo. Abaixei-me vagarosamente sobre seu rosto, com uma pequena
lanterna na mão, para verificar seus reflexos. Assim que a luz encontrou o
globo ocular, ela soltou um grito horrível. Talvez não possa dizer que foi um
grito realmente. Era mais como o ruído de um porco no momento da morte. Dei um
salto, enquanto ela cravava as unhas no próprio olho, totalmente atormentada.
Parecia que o simples contato com a luz lhe causara um transtorno desolador. Naquele
momento de desespero, ela começou a arranhar o rosto. Gritei por ajuda, mas
ninguém apareceu. Todos ocupados, com certeza. Havia muito mais pacientes que
enfermeiros e médicos. A situação era caótica e a tendência era que só
piorasse, cada vez mais.
Usei toda minha força
para contê-la e acabei levando alguns arranhões no braço. Qualquer um teria se
desesperado com aquilo. Vi vários companheiros se ferirem dessa forma e
acabarem tendo o mesmo fim dos outros pacientes. Era o mesmo que uma sentença
de morte, já que nenhum infectado havia se curado até então. Mas eu não me
importava mais, já estava condenado e só me restava esperar o momento
derradeiro. O segundo paciente que chegou ao hospital havia me arranhado e
mordido logo que a doença começou a se espalhar, uns dez dias antes. Ainda nem
tínhamos noção se era aquela epidemia que havia se espalhado pela Europa em
poucas semanas. Assim que a enfermidade foi confirmada, desesperei-me, mas não
comentei com ninguém e continuei trabalhando normalmente. Não fazia sentido
para mim, mas até aquele momento nenhum sintoma havia se manifestado. Talvez
meu sistema imunológico fosse um pouco mais resistente, talvez meu organismo
apenas fosse zombeteiro e estivesse prolongando minhas expectavas. Por sorte, as
marcas dos arranhões que eu carregava logo abaixo do nariz não levantaram
suspeitas. Mas logo eu começaria a manifestar os primeiros sintomas. A partir
desse ponto, seriam apenas alguns dias até o encontro com as mãos frias da
morte, era inevitável.
Fiquei um tempo olhando
Helena, que parecia tranquila agora. Na verdade ela não se mexia, não
apresentava mais nenhuma reação. Eu já sabia o que havia acontecido, mas
tentava enganar a mim mesmo. Não me dei conta de quantos minutos se passaram,
até que uma enfermeira entrou, olhou-a e chamou pelos outros. Agora ela era
apenas mais um caso. Mais uma morte causada por aquela doença maldita. Eu tinha
visto inúmeras vítimas nos últimos dias, porém, aquela morte me tocou de uma
forma diferente. Uma jovem no auge da vida. Tantos sonhos a serem completados.
Tudo se encerrava ali. Naquela cama de hospital. As lembranças de Olívia
voltaram como os ventos de uma tempestade no verão. Senti uma lágrima fria
escorrer pelo meu rosto. Passei a mão rapidamente e deixei o quarto, antes que
alguém testemunhasse aquele momento de fraqueza.
O corredor era uma
loucura total. Velhos, crianças, homens, mulheres, ninguém estava a salvo
daquela maldição. Caminhei entre eles, sem voltar sequer um olhar para aquelas
faces abatidas. Meus pensamentos estavam longe, enquanto eu vagava pelo
hospital. Voltei à realidade quando me lembrei de trocar os curativos das
costelas. Havia sido atropelado há poucos dias. Nada grave, além de um grande
susto. Há quantos dias eu não tirava a gaze? Não conseguia me recordar. Com
toda aquela loucura, era difícil pensar em algo tão fútil quanto meu pequeno
corte. Mas agora era uma desculpa perfeita para me refugiar de toda aquela
torrente de sensações que tomava conta de mim.
Peguei os materiais em
uma sala e saí rápido. Não queria que algum colega se oferecesse para me ajudar
e se desse conta do estado em que me encontrava. Com toda a certeza, eu seria
julgado por estar tão abatido com a morte de uma paciente, enquanto dezenas
continuavam chegando ao hospital. Entrei em uma cabine no final do banheiro.
Fechei a porta e comecei a tirar os esparadrapos. Meu rosto se contorceu
antecipando a dor aguda que viria. Nas primeiras vezes que havia trocado os
curativos quase desmaiei. Cheguei a pensar que os exames de raios X estavam errados
e havia alguma fratura escondida. Mas agora não notava sequer uma leve pontada.
Enfim, estava cicatrizando. Terminei de tirar as gazes velhas e não havia
nenhum sinal do ferimento. Não havia nada, nem uma mísera cicatriz. Corri para
o espelho e demorei alguns segundos para me dar conta de que os arranhões não
estavam mais no meu rosto. Fui tomado pela confusão. Lembrei que as dores
haviam diminuído logo após minha infecção. Uma esperança. Havia uma esperança.
E era eu. Como fui tolo em não notar isso desde o início. Era difícil entender
porque em mim a doença se manifestava de forma tão diferente. Mas não
importava. Eu era a resposta. Eu era a cura.
Saí correndo do
banheiro e passei rapidamente, ainda sem muita ideia de como proceder. Eu
estava em transe. Era muita alegria. Virei no primeiro corredor e entrei em uma
pequena sala, onde juntei algumas seringas e agulhas. A maior urgência era
tentar entender como aquilo funcionava. Desci as escadas, rumo ao necrotério.
Precisava de algum corpo para iniciar os testes. A resposta devia estar no meu
sangue. Precisava estar. Eu sabia que, provavelmente, nenhuma resposta viria
assim tão fácil, mas não importava. A euforia parecia mover minhas pernas, mais
que o raciocínio. Abri a porta e me senti aliviado por não ter ninguém.
Caminhei calmamente, tentando organizar os pensamentos. Tudo bem, eu iria tirar
o sangue de alguma vítima. E depois? Pouco importava, o êxtase havia tomado
conta de mim. Era a possibilidade de cura, afinal.
Aproximei-me de um
corpo que ainda estava sobre a maca. Com certeza, tinha falecido há pouco tempo
e, por isso, ainda não estava nas câmaras frias. No pé direito havia apenas um
pedaço de papel preso por um barbante. 57 era o número. Quem era 57? Do outro
lado constava o nome, mas agora não importava mais. Era apenas mais um. Em
breve o mesmo aconteceria com Helena. Talvez, ela fosse o 58, talvez, o 59. Quem
se lembraria? Seus sonhos, anseios e caminhos a percorrer se transformariam em
um número qualquer que não faria diferença. Talvez eu fosse a única chance para
todas aquelas pessoas. Talvez eu fosse a única chance para a humanidade, como
alguns julgavam. Eu precisava andar logo. Cada minuto que eu perdesse poderia
se converter em vítimas.
Puxei o lençol que cobria o frio corpo estendido.
Era um homem, mas dizer qual a idade era quase impossível. A forma como o corpo
estava destruído não permitia que alguém o reconhecesse. Até eu poderia ter
cuidado dele em algum momento. Mas os arranhões eram muitos. Uma das orelhas
tinha sido arrancada, provavelmente por ele mesmo. As costelas estavam
enfaixadas, lhe dando um aspecto de múmia. Na coxa esquerda, havia uma imensa
cicatriz. Era fruto de uma cirurgia feita há muito tempo. Quando ainda era
criança. Ele havia caído da bicicleta, ao tentar desviar de uma caçamba de
lixo. No início, disseram a seus pais que talvez ele nem voltasse a andar,
tamanho tinha sido o estrago em seu fêmur. Mas ele se comportou bem, e a
recuperação foi perfeita. Só então me perguntei como eu sabia tanto daquela
pessoa. Puxei a etiqueta e lá estava seu nome. Ivan Moreira. A etiqueta caiu de
minha mão. Eu estava totalmente perplexo.
Uma enfermeira entrou
na sala, xingando por causa da porta aberta. Passou por mim sem nada dizer, apenas
esbravejando ao ver o cadáver descoberto. Eu continuava na mesma posição. Não
conseguia me ater às palavras que ela proferia. Ainda não faziam sentido para
mim. Ela abaixou-se bem na minha frente, pegou a etiqueta e prendeu-a ao pé
daquele corpo, soltando mais alguns palavrões. Cobriu-o e pegou um monte de papéis
que estava sobre a mesa ao lado. Ouvi um barulho à porta e vi Helena entrando.
Seus belos cabelos estavam intactos, assim como o profundo azul de seus olhos.
Não havia nenhuma marca em seu rosto.
A enfermeira passou rápido
por ela e fechou a porta, com um forte puxão. Helena sorriu pra mim e veio em
minha direção. Abraçou-me forte e apoiou a cabeça em meu peito.
- Muito
obrigada, doutor. Nunca me esquecerei do senhor e de tudo que fez por mim.
Agora estou curada e posso voltar à minha rotina. Tenho tantas coisas a
realizar ainda. E deverei cada uma delas ao senhor e à sua dedicação. Tenha
certeza, quando eu tiver um filho, ele terá o seu nome: Ivan.
Eu não disse nada. Apenas permaneci abraçado a
ela. Uma hora ela também compreenderia. Sozinha. Uma lágrima escorreu pela
minha face. Ouvi um ruído na porte e levantei minha cabeça, ainda abraçado a
Helena. Lá estava Olívia. Ela sorriu para mim, como só ela sabia fazer. Foi
assim que descobri que eu não era a cura. Não havia cura. Só havia a morte. Mas
a morte não era tão feia e escura como eu temia. Era um descanso, quase um
alívio.
Este conto foi escrito em resposta ao 12° Desafio Literário da Skynerd, cujo tema proposto foi: "Uma estranha anomalia deforma alguns, mata outros, mas tem consequências diferentes em você, como..."