quinta-feira, 10 de abril de 2014

NOITE 240


Bom, este texto não é meu, é da minha grande amiga Istella Lira Conder. É um grande presente, que me deixou muito feliz. á algum tempo eu escrevi um conto chamado Classy Girls, inspirado na música da banda The Lumineers. Pois bem, a Istella escreveu uma versão daquele conto, visto pelos olhos de Lígia. O resultado foi este belíssimo conto. Fiquei extremamente honrado com este presente. E confiram outros contos da Istella (ou simplesmente "Sally Mão-de-fada com peixeira", para os íntimos) no blog dela, o Box of Words. Então, chega de falação e vamos ao conto:

Noite 240, por Istella Lira Conder

Algo que todos devem saber: há seres que estão na Terra somente para roubar. Sua alma, seu coração, seu espírito, suas emoções e principalmente a sua vida. Eles freqüentam, na maioria das vezes, bares com uma tendência a lotar. Eu me chamo Lígia, e sou um desses seres. Diferente de outros, não escolho qualquer vítima. É preciso primeiro saborear seus aspectos atraentes para depois, com prazer, finalizar a noite.

Um bate-estaca dos mais enjoativos tocava quando entrei no bar. O bar não estava tão cheio como de costume. Olhei em cada rosto que estava presente, procurando um que se destacasse. A mesmice do ambiente acabou me causando náuseas, porém me forcei a ficar. A noite estava em um clima ótimo e não era à toa. É mais um sinal de que vou encontrar alguém no primeiro bar. 

Sentei no balcão e pedi uma cerveja. A forma que eu estou hoje é: ruiva, cabelos lisos, um corte Chanel, pescoços à mostra. Um batom vermelho, para chamar a atenção principalmente para os meus lábios. Uma jaqueta de couro, pois esta irá demonstrar que não estou para qualquer um e uma calça de marca, de cor bege, para demonstrar que tenho um lado sensível. O garçom e eu começamos a falar sobre tipos de bêbados. Ele definia algumas pessoas que vinham no bar e o real motivo que vinham. A maioria estava aqui para beber e levar alguém pra cama, mas tinha uns que estavam aqui por não quererem encontrar a mulher acordada, não ficar sozinho em casa ou por simplesmente quererem estar ali. Ele não soube me definir, mas me chamou de “caçadora”. Isso me intrigou e então dei mais atenção para ele, que, aliás, me faz rir com facilidade. Bom, a noite não está difícil mesmo. 

A noite de hoje estava ventando forte e, ao ser aberta a porta do bar, entrou um vento frio e trouxe até o balcão um cheiro agradável, que não dá para defini-lo, mas que me fez virar a cabeça levemente para o lado e olhar de onde vinha. Vinha do cara que estava trajando uma camisa do Darth Vader. Interessante. Ele estava acompanhado de uns amigos. Sentaram a uma mesa próxima ao balcão. Voltei a minha atenção às piadas do garçom, que ainda não tinha perdido a graça e o interesse. Mas aquele cheiro me fez virar o pescoço algumas vezes para trás e observar aquele rapaz. Ele parecia estar um pouco deslocado com o assunto dos amigos. E mais uma vez voltei a atenção para garçom atrás do balcão. 

Estávamos falando agora sobre essa música da juventude moderna, que não passava de batidas eletrônicas, sem ordem e direção alguma. Como a maioria das coisas que eles faziam. Eu aproveitei que o garçom estava realmente encantado com nosso papo e sugeri que ele colocasse alguma música do meu gosto que acabei desenvolvendo depois de muitas noites em bares. Ele começou com a leveza e monotonia de Nothing As It Seems, de Pearl Jam. Mais uma vez a porta do bar se abre, trazendo um vento frio, que carrega até o meu nariz o cheiro do rapaz novamente. Viro a minha cabeça para trás, passando o olhar por algumas pessoas que estavam ali. Quando o meu olhar encontra o rapaz, o seu olhar está em mim. Não resisti e então sorri. É ele. Dou um aceno de mão para chamar a sua atenção. Não demora muito e ele se levante e segue para o balcão.

- Uma cerveja, por favor - ele falou se dirigindo ao garçom.

- Essa desculpa pra começar algum assunto comigo não vai colar, sua cerveja ainda está cheia – falei para ele com um sorriso no de canto a canto - Lígia - completei lhe estendendo a mão.

- Rodrigo. E preciso mesmo pegar outra cerveja, essa aqui já está quente.

- É, eu percebi mesmo que você só estava segurando a garrafa, mas não estava bebendo nada. Já deve estar terrivelmente quente mesmo.

- Então você estava me observando, suponho.

- Estava. Há um bom tempo. E você demorou um pouco para notar. Achei você diferente. Me passou a impressão de que não é do mesmo tipo que enche esse bar sempre. Não sei bem porque, mas me passou uma impressão de ser mais interessante que a maioria. E gostei do seu estilo.

- Meu estilo? Olha, por essa eu não esperava.

- Gostei da sua camiseta. Darth Vader? Passa a ideia de uma pessoa bem humorada e que gosta de cinema. Será que acertei?

- Que gosto de cinema você acertou em cheio. Bem humorado, acho que você mesma vai precisar me falar mais no final da noite.

- Prometo ser sincera.

- Espero que seja.

- Eu sempre sou, mas isso não é necessariamente um ponto positivo. A minha resposta vai depender mais de como você vai se comportar - dei um sorriso e uma piscada singela.

- E você é da cidade mesmo? Nunca te vi nesse bar antes. E olha que eu costumo frequentar esse lugar com certa frequência. Pelo menos costumava.

- Não, na verdade sou de outra cidade, mas moro aqui há algum tempo. Há muito tempo, na verdade, mas estava viajando nos últimos dois anos e só voltei ontem.

- Viajando por onde? Se não for muita intromissão minha.

- Claro que não. Viajei pela Europa nesses tempos. Conheci vários países, mas fiquei quase nove meses na Áustria. Sou de lá. Minha família é de lá, na verdade.

- Interessante, tenho muita vontade de conhecer a Europa. Toda aquela cultura. Deve ser uma experiência fantástica.

- Isso é o que mais me atrai a viajar por aqueles países. Já conheci outros cantos da Terra, mas nada se compara ao velho continente europeu. A cultura, as artes, a história parece estar viva em cada rua, em cada prédio. Você deveria ir até lá.

Ele tinha o cheiro agradável. Sua fala era de um encantamento que poderia me fazer perder o controle e desistir do que vim fazer. Era ele e eu não mais precisava adiar o fim dessa noite. Ficamos conversando por um longo tempo, como se estivéssemos em um cômodo à sós, falando sobre só o que nós queríamos nos dar o luxo. O olhar dele era penetrante e eu só desviei o meu quando começou a tocar Doom and Gloom. Eu vi os seus lábios se mexerem e fiz-me escutá-lo cantarolando alguns versos da música. Interessante. 

- Você gosta dos Stones?

- Na verdade sou simplesmente fascinado por eles. 

- Mais uma coisa em comum então. Eu amo tudo que eles já fizeram.

- Eu tenho a discografia completa deles em meu computador. E várias músicas no celular também, é claro.

- Fico realmente impressionada como eles ainda conseguem fazer músicas nessa qualidade, depois de tanto tempo de carreira.

- Eu também. Essa música que está tocando é a prova disso. Depois de 50 anos eles ainda conseguem criar algo assim. Algo que seja bom e atual, mas que mantém a cara deles.

- Nossa, eu penso exatamente a mesma coisa. Mas, e a velha questão?

- Qual?

- Beatles ou Rolling Stones? Pense bem, porque essa resposta é muito importante para a minha avaliação a seu respeito, mocinho.

- Eu gosto das duas.

- Não vale. Tem que escolher uma.

- Ah, então eu fico com os Stones. Resposta correta?

- Não sei, depende dos motivos. Me convença.

- Bem, antes de tudo, volto a dizer que gosto das duas bandas. Mas eu acho que os Stones são mais versáteis. É muito diferente o que eles fazem em cada disco, mas mesmo assim eles mantêm alguma coisa que é só deles. Mal a guitarra começa os primeiros acordes e eu sei que é uma música deles. Não sei explicar muito bem o que é, mas tem algo deles em todas as músicas. E então? Resposta certa?

- Corretíssima! Eu penso exatamente o mesmo. -  Fiquei me perguntando se eu realmente queria terminar com isso.

- Bom então eu devo pegar meu prêmio agora, suponho.

- É, você merece. Respondeu corretamente e ainda complementou com bons argumentos - e deu-lhe um suave beijo no rosto. – Mais uma vez o cheiro dele me pega de surpresa. Com certeza ele será inesquecível. 

- Esse prêmio foi muito pouco pelo esforço cerebral que tive agora - completou ele, segurando levemente a minha cabeça e levando seus lábios calmamente na direção dos meus. 

- Calma lá, rapazinho - protestei quando já estávamos quase nos beijando, empurrando-lhe com um mão no peito - já devia ter percebido que não sou do mesmo tipo de garota que costuma frequentar esse bar. Não beijo nesses bares, querido. Entendo seu esforço em criar uma boa argumentação na resposta. Mas, para os meus padrões, o prêmio foi mais que adequado. Desculpe, mas eu sou assim. As pessoas que vêm a esses bares só procuram diversão e nada mais. Não se importam com os sentimentos dos outros, só querem curtir o momento. Mas eu não sou assim. E fujo desse tipo de pessoa.

-  Mas por que isso? Nunca dá uma chance para ninguém?

- Sim, dou muitas chances, como estou dando a você. Se você realmente se interessar, não vai ligar de conversar comigo sem que haja algo além disso. Quem sabe outro dia não rola alguma coisa a mais? 

- Entendo. Mas não quer dizer que concordo.

Eu ri da situação e ele me acompanhou na graça. Falamos sobre mais algumas coisas durante um tempo. Eu pedi licença e falei que precisava ir ao banheiro. No banheiro, me olho no espelho e me pego com um sorriso de lado ao lembrar-se de como ele fala. Coço a cabeça, confusa, pois isso nunca tinha acontecido. Ele é muito especial. E eu sinto nele uma melancolia que precisa acabar. E eu posso acabar com ela. Porém preciso deixá-lo no ápice da alegria, para não ser doloroso. Vou pensar em algo enquanto conversamos mais. Não, não dá pra acabar com a noite agora. Eu voltei para o balcão e estava começando a tocar Dream. Música perfeita para o fim perfeito de um rapaz especial.

- Nossa, como eu amo essa música. É a minha favorita do Fleetwood Mac. Vamos dançar! – disse, já puxando-lhe pela mão.

Eu passei meus braços envolta de seu pescoço e recostei a minha cabeça em seu peito. Senti-o puxando o aroma do meu perfume para si e sorri de lado. Ele é especial. Eu decidi que estava na hora de encerrar logo essa noite. Logo ele começa a cantarolar – Thunder only happens when it's rainning. – Automaticamente levei meu olhar até o dele e continuei – Lovers only Love when they're playing. – e ao ver o brilho naqueles olhos, sorri de canto. Então eu percebo que ele está tentando aproximar mais os nossos rostos já tão próximos, eu delicadamente viro para o outro lado.

- Não se afobe, menino. Já lhe disse que sou outro tipo de garota. Tudo está perfeito, mas não passará disso. Não aqui. Não hoje.

Então, com um sorriso curto, recosto novamente a cabeça em seu peito. Sinto os lábios dele encostado-se à minha cabeça. Não mais tinha certeza se queria acabar com a noite 240. Estava tudo tão natural. Pela primeira vez em toda a minha longa vida me senti um pouco humana. Agora estava tocando Little LessConversatio, mas a gente continuava em um ritmo lento. De repente ele inclina a cabeça para me olhar.

- Acho que estamos no ritmo errado para se dançar Elvis - disse ele ao pé do meu ouvido.

- Nossa, nem percebi que música estava tocando. Estava tão bom que simplesmente me perdi em meus pensamentos.
 
- Por mim eu continuaria assim com você pelo resto da noite, mas tenho medo que acabemos tomando alguma cotovelada.

Voltamos ao bar e decidimos beber mais uma cerveja. Falamos mais sobre música, cinema, literatura. Até sobre política. Os amigos dele se aproximaram e o chamaram para ir embora. Por um segundo pensei que eu havia colocado tudo a perder por ter demorado tanto. Mas ele olhou para os amigos e falou que iria ficar mais e que arranjaria um jeito de voltar para cara. Uffa! Olhando para o rosto cansado do garçom percebo que já se passará muito tempo. As luzes do bar se acenderam. Era hora de partir.

 Ele se ofereceu para me acompanhar até o carro. Que carro? Sou uma amante de longas caminhadas. Uma característica forte da maioria de nós. Mas lembrei que há um ponto em um lateral, bem em frente a um lago que fica nos fundos do bar. O sol iria nascer contra ele.

- Desculpe-me por hoje, você esperou até agora e nem foi embora com seus amigos. Mas esse é o meu jeito mesmo. – falei encostada no carro, segurando-lhe pelas mãos.

- Não há nada do que se desculpar, foi a melhor noite da minha vida. Quando nos encontramos de novo?

- Não vamos. É por isso que me desculpo, pelo que ainda está por vir. Mas é minha natureza, não posso lutar contra. Infelizmente terei de roubar seu coração. Mas quero que saiba que gostei de você de verdade. Você é uma pessoa especial.

Eu o vi abrir a boca na tentativa de falar algo, mas eu já tinha puxado o seu rosto e colando os meus lábios nos dele e não mais senti resistência da parte dele. Fiz com que tudo acontecesse lenta e delicadamente. Transmiti-lhe sensações boas, o fiz voar num subespaço invisível. Ele não mais pensava, não mais hesitava, não mais sofria. Tudo estava calmo e finalizado. O final perfeito para alguém com o cheiro tão especial.

Já passava das oito horas e o Sol começava a esquentar, quando Antônio entrou correndo no beco que dava acesso ao lago onde se exercitava toda manhã. Seguia perdido em seus pensamentos e na música que saía de seus fones. Mas algo fez com que voltasse à realidade. A cena que presenciou fez seu estômago revirar. Se aproximou para verificar melhor do que se tratava. Tudo era como um filme de terror. 

Atrás de uma caçamba de entulhos, um corpo estava estendido. Era tão branco como uma folha de papel, como se sequer uma gota de sangue houvesse ali. Estava completamente enrugado, como nenhum velho poderia ser em vida. Era estranho que não houvesse sangue espalhado pelo local ou pelo corpo daquele senhor. Provavelmente a morte havia sido causada pelo imenso buraco que havia em seu peito. Chegou mais perto e não conteve a ânsia de vômito. Só viu um imenso buraco e um vazio onde outrora estivera seu coração. Mesmo ali não se podia identificar nada de sangue, apenas algumas gotas que haviam manchado a camiseta com a grande face de Darth Vader.



PS 1: A autora se baseou do texto Classy Girls do grande Giovani Arieira.
PS 2: A autora também prefere Rolling Stones à Beatles (não desfazendo dessa super banda).
PS 3: Esse texto é uma lembrança para o autor-inspirador ler na Holanda.
PS 4 (Adicionado pelo Giovani): Eu nunca teria tal sensibilidade para escrever a histórias pelos olhos de Lígia.

Um comentário:

  1. Ai, que amor. Hahahaha.
    Que bom que gostou, Ari. De verdade.
    Leia na Holanda pra lembrar de mim.

    Abçs carinhosos.

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